PELA AUTONOMIA CIENTÍFICA E DIDÁTICA DO DIREITO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Através do Plataforma Lattes, ele se apresenta assim: CARLOS MAGNO DE SOUZA PAIVA. Doutor em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2014). Mestre em Direito Público pela Universidade de Coimbra (2008). Possui Graduação em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (2005). Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de Ouro Preto. Foi Professor Assistente da Universidade Federal Viçosa (2012). Pesquisador visitante da Rzeszów University of Technology (2017). Coordenador do Núcleo de Pesquisas em Direito do Patrimônio Cultural do Departamento de Direito da UFOP (Atual). Coordenador de Assuntos Internacionais da Universidade Federal de Ouro Preto (2014-2017). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFOP (Atual). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFOP (2019-2020). Autor de livros e artigos na área de Direito Administrativo, Direito Ambiental e Direito do Patrimônio Cultural, área em que atua como Palestrante/Conferencista. Consultor nas áreas de Direito Urbanístico, Direito Municipal, Direito Ambiental e Direito do Patrimônio Cultural.
Entre seus alunos, colegas e amigos mais próximos é conhecido como MAGUINHO, um intelectual ao mesmo tempo respeitado e acessível que, às vésperas de lançar a 2ª edição do seu livro DIREITO DO PATRIMÔNIO CULTURAL, concedeu entrevista para o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC) não somente sobre a obra renovada, mas sobre sua trajetória de vida no universo cultural e acadêmico.
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GEPDC. Como surgiu seu interesse pelo patrimônio cultural?
Carlos Magno: O interesse pelo patrimônio cultural surgiu naturalmente por eu ser de Ouro Preto. Por aqui, quase a totalidade das pessoas nasce e vive em um imóvel tombado, portanto o ambiente acabou moldando o meu gosto pelo tema. Além disso, venho de uma família que possui origens distintas, mas igualmente relevantes para a percepção da identidade cultural de um indivíduo: pelo lado paterno, meu avô, Manoel de Paiva, foi um dos pioneiros a pensar o patrimônio cultural no Brasil e teve importante participação na preservação dos arquivos e do patrimônio sacro das igrejas mineiras. Sua intensa troca de correspondências com o amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade gerou, recentemente, a publicação do livro “Em Defesa do Patrimônio”, organizado pelos Professores Cléber Araújo Cabral e Amilcar Vianna Martins Filho. Já pelo lado materno, tenho uma raiz essencialmente mineira, de vivência na roça, vida simples, com saberes tradicionais, gosto pelas coisas do campo e forte religiosidade católica. Seja por um lado ou por outro, foi quase inevitável, depois que entrei no curso de Direito, orientar minha formação para os aspectos jurídicos ligados à defesa do patrimônio cultural.
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GEPDC. Quando você despertou para a existência de Direito do Patrimônio Cultural?
Carlos Magno: Meu interesse veio com os programas de Iniciação Científica da Universidade, ainda na graduação. Foi nesse momento que, diante da possibilidade de se realizar uma pesquisa científica, acabei considerando a fazer dentro de um tema que me interessava. A partir daí, não parei mais, seja na elaboração da minha monografia de final de curso, dissertação e tese. Acredito que esse meu contato com o patrimônio e a pesquisa só evidencia o quanto as ICs [iniciações científicas] são importantes e necessárias em nosso país para despertar o interesse de potenciais pesquisadores, em todas as áreas do conhecimento.
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GEPDC. Você enxerga autonomia didática no Direito do Patrimônio Cultural para constituir uma específica disciplina jurídica? Por quê?
Carlos Magno: O Direito do Patrimônio Cultural precisa ser considerado uma disciplina jurídica autônoma, científica e didaticamente. O volume de especificidades em relação à tutela jurídica dos bens culturais materiais e imateriais é absolutamente único. Pensar paisagens, saberes, tradições, lugares, memória, pertencimento, alteridade, pluralidade, identidade e todos os consensos e conflitos envolvidos nessa discussão não é algo que caiba, adequadamente, no Direito Ambiental ou no Direito Administrativo ou mesmo, apenas, no Direito Constitucional. A complexidade interna do Direito do Patrimônio Cultural já evidencia, pelo menos desde a Constituição de 1988, que o código comunicacional operativo próprio desse ramo do Direito pauta-se em um binômio exclusivo, distinto de qualquer outro ramo do Direito, qual seja: o valor/não valor cultural.
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GEPDC. Que trabalhos você considera indispensáveis para a compreensão do Direito ao Patrimônio Cultural?
Carlos Magno: Pensando em um regime jurídico do patrimônio cultural no Brasil, algumas obras são elementares para se iniciar a pesquisa e compreensão do conteúdo, seus princípios norteadores, desdobramentos sobre outros ramos do Direito e interlocução com as áreas do conhecimento próprias à compreensão do patrimônio, lembrando que não é papel do Direito dizer o que é patrimônio cultural, e sim, pensar, de modo dialógico, os meios jurídicos mais adequados de se garantir a sua condição de representatividade, inclusão e alteridade cultural. Para me restringir a doze trabalhos, e somente no âmbito jurídico brasileiro, citaria:
01. Da Proteção ao Patrimônio Cultural: Maria Coeli Simões Pires;
02. O Estado na Preservação de Bens Culturais: Sônia Rabello de Castro;
03. Teoria dos Direitos Culturais: Francisco Humberto Cunha Filho;
04. Direito do(ao) Patrimônio Cultural: Inês Virgínia Prado Soares;
05. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro: Marcos Paulo de Souza Miranda;
06. A Tutela Do Patrimônio Cultural sob o Enfoque do Direito Ambiental: Ana Maria Moreira Marchesan;
07. Palanque e Patíbulo: O Patrimônio Cultural na Assembleia Nacional Constituinte: Yussef Daibert Salomão de Campos;
08. Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo: Comunidade e Poder Público na Seleção dos Bens Culturais: Allan Carlos Moreira Magalhães;
09. A Proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Direito Civil: Eduardo Tomasevicius Filho;
10. Bens Culturais e Proteção Jurídica: Carlos Frederico Marés de Souza Filho
11. Direito Fundamental à Memória: Fabiana Santos Dantas
12. Direito do Patrimônio Cultural: Autonomia e Efetividade: Carlos Magno de Souza Paiva
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GEPDC. Que influência tem Ouro Preto na sua prática e na sua teoria patrimonialista?
Carlos Magno: Ouro Preto, provavelmente é o maior laboratório de patrimônio cultural do país. A Portaria 312 de 2010 do IPHAN estabelece os perímetros de tombamento e entorno da cidade, bem como as diretrizes gerais de gestão dessas áreas e pode-se dizer que praticamente todo o distrito sede possui restrições específicas para construção e intervenção nos imóveis urbanos em razão da sua relação direta ou indireta com o patrimônio cultural. Além disso, trata-se de uma cidade turística que recebe aproximadamente 500 mil visitantes por ano; tem uma Universidade Federal com aproximadamente 15 mil estudantes; e tem vivido uma forte expansão e pressão da mineração de minério de ferro nos últimos anos. Tudo isso associado a uma cidade que possui uma topografia de terreno 95% montanhosa. Diante esse contexto, pensar as várias dimensões e relações do patrimônio cultural no cotidiano da cidade possibilita um olhar muito privilegiado e até experimental sobre o fenômeno patrimônio e o seu lugar de debate face a todas as demais demandas e carências públicas. Fui membro do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural e também seu presidente por vários anos e acredito que o maior desafio na implementação de qualquer política pública ou regulamentação envolvendo o patrimônio está em não se verticalizar o debate. Todos têm legitimidade para se manifestar e decidir e o maior exercício é sempre o de buscar decisões conciliatórias e sensíveis à realidade local. O tecnicismo puro é uma falácia, da mesma forma que, em vários momentos é preciso fazer o papel contra majoritário. Enfim… acredito que o maior aprendizado ao lidar com a temática patrimonialista em Ouro Preto está no aprimoramento constante do exercício democrático e na busca de ferramentas adequadas que viabilizem esse exercício, ou seja, o procedimentalismo patrimonial.
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GEPDC. Fale-nos do NEPAC, por favor:
Carlos Magno: O Núcleo de Pesquisa em Direito do Patrimônio Cultural, é um Grupo de Pesquisa vinculado ao Departamento de Direito da UFOP e cadastrado do Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Atualmente conta com 15 pesquisadores das áreas do Direito, Museologia e Ciência Política e envolve alunos e pesquisadores de nível de graduação, mestrado e doutorado. O NEPAC existe de forma ininterrupta desde 2008 e seu foco está na pesquisa dos efeitos jurídicos decorrentes das regulamentações e ações de gestão e eleição dos bens culturais materiais e imateriais. O NEPAC também promove eventos, presta consultorias, atua como amicus curiae, oferece cursos de capacitação e possui suas próprias publicações. Possui uma rotina de reuniões semanais e anualmente abre edital de seleção para novos pesquisadores. Desde 2020 as reuniões têm ocorrido, principalmente, de forma virtual o que viabiliza a participação de pesquisadores de diferentes partes do país. Graças ao trabalho do NEPAC, a UFOP é a primeira Universidade do país a oferecer a disciplina Direito do Patrimônio Cultural como disciplina obrigatória na graduação em Direito, além de possuir uma agenda de pesquisa específica voltada para o Direito do Patrimônio Cultural no seu Programa de Mestrado em Direito. A melhor maneira de conhecer melhor o NEPAC e seguindo sua conta no Instagram, que possui conteúdo sempre atual e pertinente: @nepacufop
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GEPDC. Como você avalia a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro ao longo da nossa história?
Carlos Magno: Pergunta muito complexa, mas acredito que em breves palavras, pode-se dizer que em um país com dimensões continentais, fortíssimos desequilíbrios sociais e características de colonização tão peculiares como o Brasil é preciso todo um esforço para se pensar a proteção do patrimônio cultural conforme nossa própria realidade e isso nem sempre ocorreu. Temos um regime jurídico de proteção ao patrimônio cultural bastante anacrônico e pulverizado. Ao longo da história, não sem que houvesse exceções, normas jurídicas foram se sobrepondo de modo descontextualizado e desestruturado, gerando uma miscelânea normativa com efeitos ainda mais agravados em razão da nossa condição de país federalista. Temos sim alguns bons parâmetros legais, sendo o principal deles a Constituição de 1988, todavia, entendo que estamos passando da hora de buscar a construção de uma norma sistematizadora e orientadora do regime jurídico de proteção ao patrimônio cultural no Brasil e isso deve, evidentemente, ser feito da maneira mais transversal e inclusiva possível.
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GEPDC. Por favor, nos explique brevemente a Lei Robin Hood e opine sobre a sua importância para o patrimônio cultural de Minas Gerais:
Carlos Magno: A Lei Robin Hood, Lei 12.040 de 28 de Dezembro de 1995 é uma norma do Estado de Minas Gerais que estabelece critérios para a distribuição da cota-parte do ICMS devido aos Municípios visando descentralizar a distribuição do tributo para as cidades mineiras, especialmente buscando desconcentrar renda e transferir recursos para regiões mais pobres do Estado. No âmbito da Lei Robin Hood existe o Programa “ICMS Patrimônio Cultural” de incentivo à preservação do patrimônio cultural por meio de repasse de recursos para os Municípios que preservam seu patrimônio e suas referências culturais através de políticas públicas relevantes. O programa estimula as ações de salvaguarda dos bens protegidos pelos Municípios por meio do fortalecimento dos setores responsáveis pelo patrimônio das cidades e de seus respectivos conselhos em uma ação conjunta com as comunidades locais. Anualmente, o Conselho Estadual de Patrimônio Cultural estabelece as diretrizes indutoras do Programa e os Munícipios que melhor comprovam suas ações em prol do patrimônio recebem maior percentual de repasse do ICMS. É uma política pública indutora fortemente consolidada no Estado e que atualmente contempla mais de 750 Municípios mineiros.
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GEPDC. Você vem de lançar a segunda edição do seu livro “Direito do Patrimônio Cultural”. Quais as novidades desta nova edição.
Carlos Magno: O Direito do Patrimônio Cultural é um livro voltado para evidenciar a autonomia científica e didática dos estudos jurídicos voltados ao patrimônio cultural. Entendo que se trata de uma obra básica para qualquer interessado que busca iniciar seus estudos no tema do Direito do Patrimônio. Mostra para o sujeito qual é o lugar científico de fala para quem se propõe a estudar a matéria. Nesse sentido, cumpre um papel semelhante ao “Teoria dos Direitos Culturais” [livro de Humberto Cunha Filho]. O “Direito do Patrimônio Cultural: Autonomia e Efetividade” é, sobretudo, uma obra teórica, mas que se propõe, em dado momento, de evidenciar os efeitos práticos decorrentes da não compreensão adequada do bem jurídico em causa quando se pensa no patrimônio cultural. A 2ª edição da obra traz uma revisão sobre o importante papel que o Direito Ambiental cumpriu nos últimos 30 anos ao servir de base principiológica para a proteção dos bens culturais em um momento em que a matéria era tida e tratada essencialmente pelo Direito Administrativo. A edição traz ainda um tópico inédito onde se discute a fundamentalidade do direito ao patrimônio cultural e avalia ainda como se daria o seu exercício em contextos marcados pela virtualização da vida cotidiana e pelas medidas de distanciamento e isolamento social.
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GEPDC. Em que estágio você enxerga a relação entre salvaguarda do patrimônio cultural e democracia, no Brasil?
Carlos Magno: Tanto em termos de demanda como em termos procedimentais, entendo que estamos em um estágio atrasado de relação entre salvaguarda do patrimônio cultural e democracia, no Brasil. Tenho a impressão, na maioria das vezes, que parte expressiva da população ainda não percebeu a importância do patrimônio cultural dentro do espectro de demandas e carências coletivas. Sinto que muitas pessoas, inclusive em Ouro Preto, veem o patrimônio como um artigo de luxo, a última das prioridades, e isso, certamente, não é em razão de qualquer má intenção coletiva ou desprezo deliberado. Falta sensibilidade, conscientização e instrução (educação patrimonial). Por outro lado, para aqueles que realmente se importam com o patrimônio e percebem sua relevância, faltam canais apropriados e legítimos de participação nas ações que envolvem a eleição e gestão dos bens culturais. Os Conselhos Municipais de Patrimônio são um importante instrumento de participação popular, por outro lado, a falta de um efetivo Sistema Nacional de Cultura, de uma regulamentação procedimental inclusiva nos processos de registro e tombamento, e a ausência de uma estrutura curricular transversal, crítica e localmente contextualizada, comprometem integralmente qualquer iniciativa de ampliação do debate democrático em torno do patrimônio cultural brasileiro. E mesmo sendo pessoalmente contrário à utilização de discursos retóricos de aplauso fácil, após bons anos de dedicação ao tema do patrimônio cultural, não consigo fugir de um jargão amplamente conhecido, mas nem sempre praticado: “é preciso investir (dinheiro, técnica e tempo) em educação patrimonial”.
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