DUAS VIDAS PARA O CORPO JURÍDICO DO FUNK

O prenome é o mesmo, “Danilo”, mas o sobrenome varia, conforme o papel: “Cymrot”, para a vida acadêmica, e “Dunas”, para o universo artístico.
No meio universitário é bacharel, mestre e doutor em direito; no universo artístico, seus gostos, inserções e habilidades vão da música clássica à brega, passando pela literatura de cordel.
Atualmente dedicado à divulgação do seu novo livro intitulado “O funk na batida: baile, rua e parlamento”, pelo qual identifica “um corpo jurídico” para a manifestação, embora afirme que a obra não se limite a ela, porque “é um livro sobre o Brasil e suas contradições, abordando temas como direito à cidade, liberdade de expressão, violência, racismo, juventude, entre outros”.
Nesta entrevista ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC) do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza, Danilo fala do novo livro no contexto da impressionante riqueza de sua(s) vida(s).
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GEPDC: Quem é Danilo Cymrot?
Danilo: Danilo Cymrot é meu nome civil e como me apresento na minha vida acadêmica. Sou graduado, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP, pelo Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense. Além disso, trabalho como pesquisador cultural e curador no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. No mestrado, pesquisei a criminalização do funk e, no doutorado, deputados policiais militares da Assembleia Legislativa de São Paulo. Também já escrevi sobre a influência da cultura mexicana no Brasil. Sou autor de diversos artigos e lancei neste ano meu livro “O funk na batida: baile, rua e parlamento” pelas Edições Sesc.
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GEPDC: Quem é Danilo Dunas?
Danilo: Danilo Dunas é meu nome artístico. Foi criado em 2011, quando decidi seguir a carreira solo de cantor, depois de tocar sanfona em uma banda e com duplas sertanejas em bares. Em 2016 lancei meu primeiro álbum autoral, “Danilo Dunas”. Em 2018, lancei meu segundo álbum, “Refluxo”, que traz participações especiais das Frenéticas Sandra Pêra, Leiloca e Dhu Moraes, de Edy Star e de Zéu Britto. Fui premiado no Concurso de Marchinhas do Bloco Nóis Trupica Mais Não Cai em 2016, 2018 e 2020. Em 2019, fui finalista no tradicional Festival de Marchinhas de São Luiz do Paraitinga. No mesmo ano, lancei os singles “Mexe comigo” e “A Bela e a Fera”, com participação especial da cantora paraguaia Perla, e o álbum “Pecho abierto”, que traz versões em espanhol de minhas canções. Em 2020, lancei os singles infantis “Ciranda da Terra Redonda”, com o Duo Badulaque, e “Só uma picadinha”. Lançarei em agosto deste ano meu quarto álbum, “Me deixa entrar”, com participações de Zeca Baleiro (clique AQUI) e Carlos Careqa, e gêneros musicais como o rock, frevo, bolero, samba e funk.
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GEPDC: Como o Direito entrou e permanece na sua vida?
Danilo: Sempre fui uma pessoa mais de Humanas e resolvi prestar Direito, entre outros motivos, pela diversidade de caminhos profissionais que esse curso me permitiria seguir. Ao todo, passei dez anos ininterruptos na Faculdade de Direito da USP, pois emendei graduação, mestrado e doutorado. Já na pós-graduação, no entanto, me afastei do Direito, pois minha abordagem era muito mais sociológica, antropológica e histórica do que propriamente jurídica. Desde que defendi meu doutorado, em 2015, não tenho mais vínculos formais com a Faculdade de Direito e não trabalho com Direito no meu dia a dia. No entanto, meus amigos mais próximos são justamente do tempo de faculdade e meu livro recém-lançado, “O funk batida: baile, rua e parlamento”, traz também contribuições do campo do Direito, na medida em que analisa dezenas de projetos de lei.
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GEPDC: Como as artes entraram e permanecem na sua vida?
Danilo: Fiz curso de musicalização para bebês com Walkyria Passos Claro, ou seja, as artes estão na minha vida antes mesmo de eu me entender por gente. Comecei a tocar piano erudito aos cinco anos de idade, indiretamente influenciado por meu avô materno, que tinha um piano em sua casa e sempre ouviu muito música erudita. Estudei alguns anos no Conservatório Magda Tagliaferro, onde tive aulas com Armando Fava Filho. Participava de concursos, audições e concertos. Meu ídolo musical era Mozart, pela excentricidade com que foi retratado no filme “Amadeus”, de Milos Forman, mas já tinha uma queda por compositores de piano mais populares, como Ernesto Nazareth. Influenciado por meus pais, comecei a ouvir ainda criança cada vez mais MPB e me interessar em ler e pesquisar sobre o assunto. Comecei desde essa época a ler biografias e colecionar CDs. Hoje tenho mais de 2 mil, faixa por faixa catalogada. Depois de tocar piano popular e violão, adotei em 2006 a sanfona. Em 2005, após uma oficina com Glauco Mattoso, comecei a escrever poesia rimada e metrificada, como décimas e sonetos, geralmente de caráter fescenino. Em 2007 publiquei com Glauco uma peleja virtual no livro “Faca cega” (Annablume). Já havia composto algumas músicas nos tempos de escola e faculdade, quando participava de festivais de banda, mas foi a partir de 2009 que comecei a compor com mais regularidade, sempre a partir das letras. Por outro lado, fui desde cedo acostumado a ir ao cinema com os meus pais, o que me tornou um cinéfilo. Já publiquei, inclusive, resenhas de filmes e hoje meu trabalho no Sesc é mais voltado para a área do cinema. Meu vínculo com o teatro surgiu também na infância, quando tive aulas no meu clube e principalmente quando tive aulas com Gabriella Argento na minha escola e fui apresentado a Brecht. Hoje estou cada vez mais interessado em fundir as três linguagens e compor tanto para teatro quanto para cinema.
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GEPDC: Como você explica a sua relação com a literatura de cordel?
Danilo: Aprendi em 2005 com Glauco Mattoso a fazer poesia rigidamente rimada, ritmada e metrificada, principalmente na forma de décimas e sonetos. Antes disso, me encantei com o universo de Ariano Suassuna ao assistir à minissérie O Auto da Compadecida, quando era pré-adolescente e sempre admirei, quando criança na praia, a capacidade dos repentistas de improvisarem versos. Cantores como Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Zé Ramalho e Gilberto Gil fizeram minha cabeça muito cedo. O gosto pelo desafio de escrever uma poesia com tantas regras formais, somado ao gosto de contar histórias ou comentar episódios históricos com muita liberdade temática, humor, deboche e crítica social, me aproximou, assim, da literatura de cordel. Em 2020, em meio à pandemia, fiz um curso com Antônio Nóbrega, em que aprendi a versejar em outras formas populares, como o martelo agalopado e o galope à beira-mar, ampliando meu repertório.
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GEPDC: E com a música brega?
Danilo: Minha primeira relação com a música chamada de “brega” vem da infância, pois acabei escutando muitas canções que faziam sucesso na época e criei com elas uma relação afetiva. Meu interesse aumentou quando descobri o potencial transgressor da música brega de questionar o bom gosto, o elitismo, e seu componente de humor, mesmo quando retrata fatos dramáticos, muitas vezes de maneira bastante exagerada. Destaco o papel da Tropicália, principalmente de Caetano Veloso, para me aproximar deste universo, mas também dos Mamonas Assassinas e das trilhas sonoras dos filmes de Almodóvar, que sempre traziam canções muito melodramáticas. A música brega tem apelo para mim por tratar do que é mais humano e universal em nós – amor, dor de cotovelo, solidão, traição – mas que alguns têm vergonha de admitir.
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GEPDC: Você está em pleno processo de lançamentos do seu livro “O funk na batida: baile rua, e parlamento”. O que o animou escrever tal obra?
Danilo: A origem deste livro é minha dissertação de mestrado “A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica”, defendida em 2011 na Faculdade de Direito da USP, sob a orientação de Sérgio Salomão Shecaira. Eu precisava adaptá-la a uma linguagem menos acadêmica para publicá-la, mas como emendei o doutorado, acabei adiando esse trabalho. Conforme o tempo foi passando, mais trabalho eu teria para atualizá-la. O que me motivou finalmente a escrever o livro foi o convite que partiu das Edições Sesc e por acreditar que havia interesse do público, pois ao longo dos últimos anos acabei dando algumas entrevistas para a mídia sobre o assunto. Também quis publicar o livro para atualizar o meu pensamento, já que algumas coisas que escrevi na dissertação já não o representavam. Em relação à dissertação, o que me animou a escrevê-la foi o meu desejo, na época, de seguir carreira acadêmica, escrever sobre um assunto que ainda não havia sido tão explorado, ainda mais na Faculdade de Direito, e unir Criminologia e música, duas áreas do meu interesse. Constatei que o funk frequentemente aparecia no discurso midiático e político associado à violência e/ou criminalidade e quis questionar isso de forma crítica.
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GEPDC: Por que as pessoas deveriam ler seu livro?
Danilo: Eu recomendo a leitura do meu livro para se ter um panorama mais histórico de como o Estado brasileiro tem lidado com o funk, não só para mostrar como há uma certa continuidade entre práticas de repressão a outras manifestações culturais associadas a jovens, negros e pobres e a repressão ao funk, mas também para complexificar o debate e mostrar que a relação do Estado com o funk não é apenas de repressão. Analisei no meu livro dezenas de projetos de lei e decretos, o que ajuda a respaldar hipóteses que eu e outros autores defendemos e a organizar esse corpo jurídico temático. Além disso, meu livro não é apenas para interessados em funk. Mais do que um livro sobre um gênero musical, como escreveu Hermano Vianna na orelha, é um livro sobre o Brasil e suas contradições, abordando temas como direito à cidade, liberdade de expressão, violência, racismo, juventude, entre outros.
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GEPDC: Sendo você um integrante do Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP que muito lida com as questões das políticas culturais, como você as enxerga no atual quadro histórico do Brasil?
Danilo: As políticas culturais não estão apartadas de um quadro mais geral de retrocessos em políticas públicas. Sofrem tradicionalmente com o problema da descontinuidade, subfinanciamento e precarização, mas isso se agravou no último governo, que criminaliza artistas e congela programas, deixando à míngua um setor tão importante não só para o desenvolvimento humano e social, mas também para a economia.
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GEPDC: Se lhe fosse dado o poder de implantar uma política cultural importante para o Brasil, qual a que você implantaria e por quê?
Danilo: A política cultural mais necessária para o Brasil é aquela que respeita a diversidade cultural e regional, contemplando não apenas os mesmos de sempre, mas também artistas que não têm tanto apelo comercial e acesso a patrocinadores privados. É necessária uma política cultural que, mais do que querer levar a cultura hegemônica a todos, reconheça outras formas de manifestações culturais, sem hierarquizá-las. Uma política cultural que se articule a políticas educacionais não só para “formar públicos”, mas principalmente para dar condições para os artistas se desenvolverem desde cedo. Uma política cultural que compreenda o papel central que a cultura tem na economia do século XXI. Não é preciso começar do zero nem reinventar a roda. Experiências bem-sucedidas como a expansão e interiorização das bibliotecas, os pontos de cultura e editais específicos para culturas periféricas ou marginalizadas, ainda que precisem de ajustes pontuais, merecem ser retomadas e aprofundadas. Por fim, é necessário que essas políticas culturais tenham um controle rígido da sociedade civil, por meio de conselhos, para dar mais transparência a elas, democratizar sua implementação e evitar que sejam instrumentalizadas de forma autoritária pelo Estado.
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