MÁRIO PRAGMÁCIO APRESENTA LIVRO DE THIAGO ERTHAL SOBRE FUNDOS PATRIMONIAIS
PREFÁCIO

O incêndio do Museu Nacional, ocorrido em 2018, é um trauma para o campo do patrimônio. Muita gente assistiu perplexa pela televisão. A recordação do edifício flagrando, ao vivo num domingo à noite, é um pesadelo que perdurará gerações. Ninguém quer revisitar essa tragédia, pois “é o quadro que dói mais”.
E dói muito. Só de pensar na correria dos alunos e funcionários até o portão da Quinta da Boa Vista, tentando resgatar os objetos que lhes cabiam às mãos; ou de rememorar o semblante dos bombeiros, frustrados em não conseguir puxar água dos hidrantes, gera o terrível sentimento da perda. Muita gente prefere esquecer.
Não é por acaso que a fachada do prédio, ainda intacta, estampa a capa deste livro – ilustrada com a fotografia de Halley Pacheco de Oliveira –, despertando, até ao leitor menos atento, a melancolia do perecimento. A obra que o leitor tem em mãos, física ou digitalmente, é uma detida análise dos atos que se sucederam a partir do “trauma da Quinta da Boa Vista”, fruto da brilhante tese de doutorado de Thiago Serpa Erthal, que tive a honra de compor a banca de defesa, em 2021.
“Na noite do dia 02 de setembro de 2018, a cidade chorou”. É assim que Erthal começa seu livro, revirando os sentimentos compartilhados por muita gente. Para quem não lembra, apenas nove dias após o fatídico incêndio – e o utilizando como justificativa – o governo federal publicou a Medida Provisória 851/2018 (MP 851), instituindo os fundos patrimoniais no Brasil, instrumento bastante conhecido pelo seu sonoro nome anglófono: endowments.
A Medida Provisória 851 – que depois foi convertida em lei – parecia ter caído do céu norteamericano para salvar a funesta gestão do patrimônio cultural brasileiro. Naquele momento, a rapidez com que foi editada tal MP chamou bastante atenção dos especialistas, sobretudo em razão de sua complexidade e envergadura. Certamente, como bem demonstra o livro de Erthal, não foi uma norma criada no calor do momento.
Mas como importar esse instituto norteamericano para a realidade brasileira? Qual o impacto desse marco legal para o campo do patrimônio, especialmente em âmbito federal?
Na presente obra, intitulada no vernáculo de “Fundos Patrimoniais Culturais”, Thiago Erthal enfrenta tais questões, trazendo um inédito estudo jurídico acerca da criação desse instituto aplicado ao setor cultural brasileiro, através de um vasto repertório que inclui entrevistas, indicadores e manejo primoroso de dados e importantes referências estrangeiras, sobretudo da literatura estadunidense, que é a terra natal dos endowments. As entrevistas que Erthal realizou, vale destacar, são preciosas fontes primárias para se compreender o contexto da previsão legal dos fundos patrimoniais no Brasil, sendo um inestimável registro acerca das recentes políticas culturais brasileiras.
O livro é certeiro em se debruçar sobre a relação umbilical entre os fundos patrimoniais e a filantropia. Isso confere ao trabalho uma profundidade necessária para se compreender os desafios jurídicos no traslado desse instituto. Erthal faz uma arqueologia da filantropia, buscando suas origens históricas e aplicações atuais, principalmente a partir do modelo estadunidense, para, então, delinear a jovem biografia dos fundos patrimoniais brasileiros.
De 2018 para cá, vale ressaltar, são raros os trabalhos que versaram sobre o assunto, no intuito de complementar o importante, porém escasso, material produzido pelos próprios agentes que participaram, desde o início, do processo de construção normativa da Medida Provisória. Este livro possui, portanto, o mérito de preencher a lacuna através de um trabalho científico com distância suficiente para emergir as necessárias críticas, uma vez que não é um produto das relações governamentais que deram origem ao marco legal.
Por tudo isso, além do ineditismo na abordagem, a leitura do livro de Thiago Erthal é um caminho necessário para quem se interessa em compreender a origem, a arquitetura, os entraves e os desafios jurídicos para implementação de fundos patrimoniais no Brasil.
Mário Pragmácio
Professor do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense
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