PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO DO LIVRO PALANQUE E PATÍBULO DE YUSSEF CAMPOS


Por Humberto Cunha Filho

Em entrevista recente, o Professor Carlos Magno de Souza Paiva, da Universidade Federal de Ouro Preto, um dos principais responsáveis, no Brasil, pela construção da autonomia científica e didática do Direito do Patrimônio Cultural, relacionou doze obras nacionais que, na sua opinião, dão, atualmente, o melhor suporte teórico à referida disciplina, entre as quais está “Palanque e Patíbulo: O Patrimônio Cultural na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)”, de Yussef Daibert Salomão de Campos.

Concordo com Carlos Magno, principalmente levando em consideração a importância da Constituição de 1988 para a novel disciplina. Acrescentaria algo, porém: provavelmente o livro de Yussef também merece estar entre os primeiros neste estudo, pois antes mesmo de a obra se referir ao patrimônio cultural, o autor, que é jurista e historiador, partilha com os seus leitores o processo de construção normativa daquilo que configura tal patrimônio, a partir do resgate de como ele foi visto e legislado no processo constituinte de 1987 e 1988.

Investigar o trabalho da Constituinte, a partir do recorte do patrimônio cultural, é uma decisão muito feliz, seja na perspectiva culturalista de Peter Häberle, para quem toda constituição é por si só um produto cultural, seja vinculado a um entendimento mais restrito de direitos culturais, como bens determinados, capazes de sofrer violação e recomposição jurídica, tal qual eu advogo.

A felicidade do recorte no movimento que trouxe à luz a Constituição de 1988 é redobrada, pois se trata do nosso primeiro movimento constituinte de natureza democrática que chegou a bom termo, isto porque o de 1823 foi abortado pelo Imperador, e o de 1946 teve mais proximidade, de fato, com o conceito de aristocracia. A participação de doze milhões de cidadão e cidadãs, que assinaram mais de uma centena de emendas populares, numa época em que sequer se cogitava sobre a popularização da internet, oferta uma ideia da intensidade com que o povo brasileiro ansiava por conhecer e experimentar a sedutora da qual tanto ouvira falar, toda coberta de véus, repleta de promessas, sonhos e cantos de igualdade, mas que com ela jamais havia convivido, a democracia.

Resultado disso, foi uma Constituição ampla, cheia de aspirações e até algo poética, ao ponto de lembrar uma versão jurídica das cidades ideais de Platão, Campanella, More e Huxley, aqui referidas não para reforçar o argumento da ilusão, do inatingível ou do decepcionante, mas para dizer que, relativamente à Carta de 88, os inexperientes constituintes brasileiros souberam fazer a diferença entre o essencial, a ser conservado – a federação, a democracia, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais – e o circunstancial – todo o restante – próprio da dinâmica da vida em coletividade, o que permite a alteração do texto, neste último aspecto, da forma mais facilitada entre todas as constituições que tivemos, afirmação provada pela média de uma emenda constitucional a cada três meses, nas três primeiras décadas de vigência.

A atmosfera de cidadania se espraiou, como não poderia deixar de ser, nas normas constitucionais atinentes ao patrimônio cultural, sendo a mais evidente delas a que determina o labor conjunto, ou seja, a co-labor-ação entre a comunidade e o poder público na promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, o que cria motivos para júbilo e preocupação: o primeiro, pelo advento de um patrimonialismo democrático; a outra, por demandar a decodificação dos enigmas de tal colaboração: o que é comunidade? Qual a intensidade da sua participação? Como se faz presentar ou representar? Como considerar a questão da diversidade?…

E quanto ao Estado, acostumado à autocracia, à oligarquia e, na melhor das hipóteses, à aristocracia patrimonial, para lidar com elementos desse novo contexto, precisaria se readequar em termos orgânicos, normativos e procedimentais?

Todos esses questionamentos estão na obra de Yussef, embora que numa escala matizada, e fazem companhia a outros inseridos com tanta ênfase que levam o leitor a imaginar-se diante de folhas escritas em neon. Um desses é o que alarga a já gigantesca compreensão de patrimônio cultural do Art. 216 para, em sentido próximo ao explorado por José Afonso da Silva, entender tal patrimônio no âmbito da ordenação constitucional da cultura.

Uma das ampliações mais evidenciadas concerne ao enigmático tombamento constitucional de “todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”, integrante do corpo permanente da Constituição (Art. 216, § 5º) que, na opinião do autor foi ardilosamente apartado do reconhecimento da propriedade definitiva que os remanescentes de tais comunidades ocupam, que passou a integrar o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória, lócus de normas que, a partir de certa data ou evento deixam de produzir efeitos jurídicos, o que não deveria ser o caso, dada a possibilidade de, a qualquer tempo ser localizado, pelo critério antropológico, uma herança quilombola.

Mas esse é só um exemplo do valoroso conteúdo de uma obra pioneira em muitas das novas percepções do palanque em que se expõe o patrimônio cultural que, ao chegar à sua terceira edição, ajuda a remeter ao patíbulo as análises rasas sobre o tema, precisamente porque desprovida das grandes virtudes que ostenta: a de ter um começo (a história), um meio (o produto constituinte), mas sobretudo por entender que a cultura não tem um ponto final, mas tem fins, sintetizado pela expressão dignidade da pessoa e das coletividades humanas.