Garantia Cultural como uma Proposta para a Promoção de Direitos à Expressão Cultural*
Carlos Eduardo da Silva Carvalho**
Hosana Lopes Francisco***
O problema da guarda e uso de itens advindos de processos ilegítimos de aquisição por parte de museus (principalmente) europeus em relação às regiões por eles colonizadas tem se apresentado de maneira cada vez mais clara nos últimos anos. No IBDCult, textos publicados por Cecilia Rabêlo[1], Anauene Dias Soares e Sergio Gardenghi Suiama[2] apresentam casos bastante interessantes. A primeira publicação relata a resolução encontrada por Nora Al-Badri, que digitalizou e publicizou uma série de acervos sem autorização dos museus que detinham as peças. O segundo texto enfatiza o prejuízo legado ao Estado brasileiro após o reiterado descumprimento legal por parte do Museu de Lille, apoderando-se de mais de 600 exemplares pertencentes a culturas nativas brasileiras.
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Além da questão imediata e ululante da posse de objetos espoliados – mormente durante processos coloniais – Gláucia Vaz[3] atenta a outra dimensão do problema, com caráter fundamental: estes objetos sob tutela de diversas instituições são tratados, catalogados, classificados, ordenados e expostos de maneira alheia às suas razões de existência. É ponto pacífico na literatura atrelada à museologia a transformação da condição do objeto durante o processo de musealização – quando deixa de ocupar determinada função no mundo, para dar vida a determinado papel narrativo. A grande questão nestes casos observados – como nas peças de nativos brasileiros e dos bronzes de Benin -, é que instituições como o Museu de Lille ou o British Museum alocarão estes objetos musealizados em sua própria expografia, sob suas próprias lógicas de compreensão de mundo. Vaz, em seu mencionado trabalho, demonstra o caráter etnocêntrico e, em última instância, racista das formas de representação assumidas por estas instituições.
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Nesse sentido, colocamos o problema de tal forma: além do espólio irreparável durante os processos coloniais – ou em momentos históricos posteriores, mas sob a égide de uma lógica colonizadora – e da posse de itens que impede o usufruto dos bens por aqueles a que deveriam ter este direito, o uso a que se destinam estes objetos é por muitas vezes engendrado em uma lógica discursiva danosa e depreciativa aos povos não europeus. Se convenções como a de 1970 da UNESCO[4] e a UNIDROIT[5] estabelecem caminhos e condicionantes para o destino destes itens, não possuímos controle a respeito do uso que se faz destes itens. Um critério – não jurídico – interessante a se pensar é o da Garantia Cultural.
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Barité e Moutinho[6] introduzem o conceito de Garantia Cultural para propor a otimização de sistemas e coleções ligadas às populações nativas das Américas, com a preocupação de que estejam adequadas aos usuários. A ideia de garantia, numa biblioteca ou museu, está ligada a critérios e mecanismos que legitimem aquisições, ordenações classificatórias e expográficas que guardam em si discursos subjacentes. Nesse sentido, a Garantia Cultural é uma proposta ampla, que pode envolver desde a necessidade de legitimação frente à literatura acadêmica sobre determinada população e sua cultura, até a presença de membros de determinados grupos culturais nos processos de curadoria e organização de acervos ou eventos. Pensando num exemplo próximo à nossa realidade, podemos observar o caso do Museu Histórico de Londrina. Ao longo de quase trinta anos, a instituição desenvolveu sua expografia de modo a louvar e fortalecer os colonizadores da região sob a ideia de figura do “pioneiro”, relegando populações como os Kaingang, Guarani e Xetá ao esquecimento no plano da memória institucional. Após manifestações e intervenções realizadas no espaço, a instituição incorporou – com a participação de representantes destas populações – em sua expografia elementos das culturas dos povos originários da região[7][8]. No caso, não havia a prerrogativa objetiva do princípio da Garantia Cultural, mas houve solicitude dos ocupantes de cargos de gestão em desenvolver este projeto, que funciona como um bom exemplo de controle por parte das populações representadas em determinada narrativa expográfica ou curatorial. A proposta de pensá-la como um mecanismo de apoio, moveria mais instituições à necessidade de seguir um caminho democratizante.
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Compreendemos que, desta maneira, poder-se-ia garantir determinados direitos como ao acesso e à preservação do patrimônio cultural. Conforme preconiza a Constituição Federal[9] de 1988, em seu art. 215, cabe ao Estado garantir o direito ao exercício da cultura, reforçando a ideia de que é um elemento essencial para a construção da identidade nacional, devendo ser valorizada e protegida como parte integrante do patrimônio brasileiro. O referido artigo ressalta a importância do incentivo à produção artística, cultural e científica, visando o pleno desenvolvimento da pessoa e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A Carta Magna estabelece, ainda, em seu artigo 216, as bases legais para a garantia da preservação e promoção do patrimônio cultural brasileiro como um direito fundamental de toda a sociedade, prevendo a criação de inventários, registros, custódia e tombamento de bens culturais, bem como a proteção de documentos e locais de valor histórico. O Plano Nacional de Cultura (PNC) também reforça tal consentimento, quando aborda a garantia cultural como um dos princípios norteadores das políticas culturais, buscando assegurar o acesso, a proteção e a promoção da diversidade cultural em todo o país. Nesse sentido, entendemos que a aproximação de princípios adotados como política de organização e preservação de coleções por gestores de cultura (a exemplo bibliotecários e museólogos), como é o caso do princípio da Garantia Cultural, pode contribuir com instrumentos legais já estabelecidos. Revisitamos neste texto casos como o do Museu Histórico de Londrina, onde a decisão sobre o uso de objetos de populações originárias no interior de coleções e exposições de caráter determinado, contou com a participação de representantes das comunidades – uma solução imediata e abordada na literatura, é a devolução de bens às comunidades a que pertencem, solução que sem dúvidas é a mais adequada para uma infinidade de casos. Propomos, como um mecanismo auxiliar, que pode ser acionado em casos onde há possibilidades de realização e interesse da população envolvida, a adoção do princípio da Garantia Cultural.
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Desta maneira, populações historicamente colocadas à margem do direito à expressão de sua cultura, alijadas da possibilidade de determinar como são representadas ou a que fio narrativo são adequados seus bens, teriam sob maior ou menor controle – a depender se o princípio da garantia é realizado com o direito à participação nos processos de curadoria e representação, ou se é condicionado a outros mecanismos como o rigor da literatura a respeito de determinada cultura – estas situações problema que cercam bens culturais. É importante ressaltar que estamos tratando não apenas da posse (questão fundamental e já bastante debatida), mas do resguardo ao direito de participar da maneira como se representa a própria cultura e a que fins estéticos e expográficos estão operando tais itens – se para difundir e celebrar formas diversas de cultura e experiência de mundo, ou se para reproduzir uma imagem do “primitivo” ou do “exótico”.
*Texto elaborado como requisito avaliativo da disciplina de Direitos Culturais e Desenvolvimento Humano ministrada pelo Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho e Prof. Me. José Olímpio Ferreira Neto, no Curso de Especialização em Gestão Cultural da Universidade Estadual do Paraná.
** Graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (2022), cursa Especialização em Gestão Cultural pela Universidade Estadual do Paraná e atua como Residente Técnico no Museu Histórico de Londrina.
*** Cursando Gestão Cultural pela Unespar, desde outubro de 2023. É Bacharel em Relações Públicas pela Uniasselvi (2023) e em Secretariado Executivo pela Universidade Estadual de Londrina (1997). Dentre suas atuações profissionais, pode-se destacar docência em nível superior, ensino profissionalizante, EAD e professora conteudista, treinamentos, coordenação e organização de eventos.
Referências consultadas
[1] RABÊLO, Cecília. Acesso à cultura, direitos autorais e acervos culturais. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/acesso-%C3%A0-cultura-direitos-autorais-e-acervos-culturais
[2] SOARES, Anauene; SUIAMA, Sergio. Apropriação internacional do patrimônio cultural indígena: a saga de 607 artefatos retidos na França. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/apropria%C3%A7%C3%A3o-internacional-do-patrim%C3%B4nio-cultural-ind%C3%ADgena-a-saga-de-607-artefatos-retidos-na-fran%C3%A7a.
[3] VAZ, Gláucia. Espoliação de artefatos africanos: o caso dos Bronzes de Benin e suas representações no British Museum. Disponível em: https://isko.org.br/wp-content/uploads/2023/06/livro-isko-Brasil_23.pdf. p. 632-640
[4]UNESCO. Convenção de 1970. Disponível em: https://www.unesco.org/pt/articles/convencao-de-1970-diversidade-cultural-antes-da-letra-da-lei.
[5] UNIDROIT. Convenção de 1955. Disponível em: https://www.unidroit.org/wp-content/uploads/2021/06/1995_Convention_portuguese.pdf
[6] BARITÉ, Mario; MOUTINHO, Sonia. La garantía indígena: aportes para su aplicación al patrimonio cultural de los pueblos aborígenes latino-americanos. Disponível em: https://isko.org.br/wp-content/uploads/2023/06/livro-isko-Brasil_23.pdf. p. 650-660
[7] LEME, Edson José Holtz. O teatro da memória: o Museu Histórico de Londrina, 1959-2000. Tese (Doutorado em História)-Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.
[8] MARTINEZ, Cláudia; VISALLI, Angelita. Entre a sala de aula e o gabinete do museu: as primeiras coleções do Museu Histórico de Londrina/PR na gestão do Padre e Professor Carlos Weiss (1970-1976). Anos 90, vol. 25, núm. 48, pp. 241-273, 2018
[9] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm